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Entrevista com Mario Dal Poz e Washington Junger (*)

Por Flavio Dickstein e Mauro Malin

 

 

Os professores Mario Dal Poz e Washington Junger, diretor e vice-diretor do Instituto de Medicina Social da Uerj, são cautelosos ao abordar os possíveis efeitos sobre a saúde das mudanças climáticas já em curso e previstas. De um lado, a maioria dos estudos existentes tem como eixo a mortalidade, não a incidência de doenças, devido à diferença qualitativa entre os dados, explica Junger: os registros mais disponíveis são de mortes; os de internações são utilizáveis em estatísticas com restrições. De outro lado, é difícil fazer projeções, argumenta Dal Poz, ?porque em geral se leva em consideração uma doença, ou um grupo de doenças, quando na realidade existe a interseção de diferentes doenças?.

Além disso, os impactos são diretos e indiretos, como se verificou no primeiro semestre de 2024 no Rio Grande do Sul. Há efeitos diretos na saúde das pessoas, provocados pelas catástrofes, mas também aumento de vetores (como o Aedes Aegypti, transmissor da dengue) e outras doenças.

 

Resposta brasileira a HIV e Aids salvou vidas

 

Uma certeza emerge, entretanto. Dal Poz afirma que nenhum país tem sistema de saúde preparado para responder às consequências atuais das mudanças do meio ambiente. Uma analogia: ?Os sistemas de saúde do mundo inteiro não tiveram condições de responder adequadamente às primeiras vagas da pandemia da Covid-19?.

Para os entrevistados, não há receita mágica para fazer face à diversidade de sistemas de saúde que foram criados. Cresce hoje no Brasil, muito mais do que o serviço público, o serviço privado lucrativo, o que remete à desigualdade na distribuição de renda e apropriação da riqueza.

Contrabalançar isso, aponta Dal Poz, ?não é fazer com que todo mundo pague na farmácia ou pague diretamente do bolso o serviço de saúde. Isso vai deixar muitas pessoas sem acesso, sem assistência e sem medicamento?. Ele prossegue: ?Devemos construir alternativas não só tecnológicas, mas de participação da população. A atuação brasileira na epidemia da HIV e Aids, com a mobilização da população, foi o que permitiu naquele momento uma resposta adequada. Salvou vidas?.

Aspecto ainda pouco avaliado é o dos problemas causados pelas soluções até aqui encontradas para enfrentar as mudanças climáticas. Um exemplo notório é o do carro elétrico. Segundo Washington Junger, ?as emissões não relacionadas com a queima de combustível fóssil para fazer o carro se mover continuam ali, para os pneus, a reciclagem do material dos pneus, a química da pintura, exceto no cano de descarga. E aquelas relacionadas às emissões para a produção de eletricidade são deslocadas para regiões onde antes, possivelmente, não havia emissão alguma?. No caso da energia eólica e outras modalidades, há impactos subestimados.

Eis a entrevista.

 

? Como se comportarão nos próximos anos as taxas de morbidade e de mortalidade decorrentes das mudanças climáticas?

Washington Junger ? Existem vários estudos, o mais comum é que eles abordem a mortalidade, por várias razões. Primeiro, devido à qualidade dos dados, à definição do óbito, à causa do óbito. São mais disponíveis diagnósticos em registros de internação, por exemplo, do que de outras fontes de dados de morbidade. Na verdade, os de internação vêm de um sistema de cobrança do SUS que tem alguns problemas para uso em estudos epidemiológicos.

O Núcleo de Pesquisa em Epidemiologia Ambiental, do qual faço parte, publicou em 2021 um estudo com projeções. Elas estão cercadas de incertezas, desde o modelo climático até aos próprios dados que usamos nos modelos estatísticos. Então, tudo o que lemos sobre clima futuro tem que ser tomado com bastante cuidado.

Há um estudo de um ex-aluno, que agora é colega na UFBA, Ismael da Silveira, prevendo, no pior cenário possível do modelo climático usado, que na década de 2090 teremos um aumento de 8,6% de mortalidade por problemas cardiovasculares. Esse número já é, na verdade, o resultado líquido, porque, com o aumento da temperatura, temos um benefício de menos mortes durante invernos mais rigorosos. Há um outro estudo, mais ou menos da mesma época, envolvendo várias cidades europeias, que apresenta números nessa mesma direção.

 

Temperaturas são o melhor indicador

 

- Você disse que essa é a previsão mais pessimista. E a mais otimista?

Washington Junger ? A verdade é que não existe a mais otimista, elas correspondem à manutenção da situação atual, supondo que as medidas de mitigação sejam implementadas. Mas no nosso estudo havia um aumento em torno de 1% no cenário mais otimista, usando o modelo mais otimista. Porque diferentes modelos produzem estimativas diferentes.

Temos fontes de incertezas com relação ao modelo e com relação aos registros. As previsões são realizadas assumindo um certo crescimento populacional e supondo que o risco de aumento da temperatura é constante, o que não é necessariamente razoável.

Estamos fazendo previsões para quase 80 anos. Pode-se imaginar que esses cenários mudem. Assim, são previsões úteis para nos organizarmos um pouco, mas devem ser consideradas com a devida precaução. Cada vez que fazemos essas análises nós vemos mudanças, por uma razão ou por outra. Em geral, muda para pior.

 

? Uma coisa menos incerta seria olhar para o passado, e ver a evolução.

Washington Junger ? Na verdade, todas essas predições são feitas olhando para o passado, até um determinado momento, assumindo que aquele risco seja constante e projetando para o futuro, usando os modelos. A gente analisa o passado utilizando dados observados, temperaturas observadas, e projeta para o futuro usando modelos climáticos, porque temos que levar em conta a variação climática.

Em geral, os estudos sobre as mudanças climáticas são baseados na temperatura. O nosso melhor indicador para as alterações no clima é o aquecimento do planeta. A gente usa a temperatura observada e modelos climáticos que preveem um certo aumento de temperatura, dependendo do cenário, até 2050, 2075.

Eu fiz alguns estudos para 2075, mas eles são baseados em variações de curto prazo, porque quando se fala em mudanças climáticas estamos falando de um período de tempo relativamente grande. Para medir a variação climática hoje usamos um período entre 20 e 30 anos do passado. Entretanto, o aquecimento parece aumentar cada vez mais rápido.

 

Associação de fatores de risco

 

Mario Dal Poz ? Uma das dificuldades de se fazer projeções nesse campo é o fato de que muitas vezes a projeção é feita com uma doença, com um grupo de doenças, quando de fato você tem a interseção de diferentes doenças. Por exemplo, o aumento de temperatura tem impacto nas doenças respiratórias, aumento de vetores, dengue, zika etc.

Pode ser o somatório, pode ser uma interseção ou, eventualmente, uma multiplicação, porque uma doença pode interferir na outra. É um campo muito interessante de trabalho, porque, como o Washington falou, permite você discutir possibilidades de ocorrência e, eventualmente, discutir políticas de mitigação.

Por outro lado, o grau de incerteza é muito grande. É diferente de você simplesmente trabalhar com uma doença, com um fator de risco. No caso das mudanças climáticas, é uma associação de fatores de risco.

Com os computadores modernos, assumindo uma série de variáveis, pode-se, vou chamar assim, brincar com essas coisas, utilizando modelos complexos de simulação. No entanto, também aumentam as incertezas, porque a gente está trabalhando com 20, 30 anos e esse é um tempo muito longo para a maioria dos sistemas de saúde, para inovação tecnológica, para medicamentos, para uma série de coisas.

Mas o que se pode dizer com certeza é que, mantido o ritmo atual das mudanças climáticas, o balanço entre temperaturas mais frias e mais quentes será desfavorável. Isso tende a ter impacto em todos esses grupos de doenças, de diferentes maneiras. Doenças respiratórias de uma maneira, cardiovasculares de outra, variações de um país a outro, como a gente viu aqui no caso da pandemia da Covid-19. Você tem a disseminação de um determinado vírus e isso impacta no conjunto de doenças que dada população tem.

Washington Junger ? Devem ser levados em consideração impactos diretos e indiretos. Em um desastre como o do Rio Grande do Sul, a gente tem alguns efeitos diretos na saúde, por causa do desastre em si, e tem outros que são indiretos, como aumento de vetores e outras doenças. Tem estudos bastante recentes começando a olhar para as doenças climáticas, os efeitos nas arboviroses [doenças transmitidas por insetos e aracnídeos], por exemplo. Porque a mudança na temperatura altera o ciclo do mosquito e, com isso, muda também o padrão de incidência da dengue, por exemplo.

Outra questão é a segurança alimentar, começa a haver problemas com a safra. À medida que diminui a disponibilidade de água e de alimento em determinadas regiões, tem-se um aumento da violência, que também é um problema de saúde. Então, os impactos são muitos, diretos e indiretos, e é difícil entendê-los sem separá-los. Em geral, estuda-se um certo grupo de cada vez. Nos relatórios do Painel Intergovernamental para a Mudança de Clima (IPCC) há capítulos e capítulos tentando dar conta desses efeitos. E eles procuram desmembrar os efeitos diretos e os indiretos. Os diretos são mais difíceis de se estimar.

 

Pandemia mostrou despreparo

 

? Hoje os sistemas de saúde pelo mundo afora, levadas em conta diferenças regionais e socioeconômicas, estão preparados para responder às consequências presentes das mudanças climáticas?

Mario Dal Poz ? A resposta simples é, obviamente, não. E a pandemia mostrou isso. Fala-se em crise do sistema de saúde aqui na América Latina. Não estou falando só de filas de espera, só da resposta para o conjunto de problemas que as populações têm. Essa pandemia mostrou que na maioria dos sistemas de saúde dos países de renda média e baixa, ou na sua quase totalidade, a situação é mais complicada. Os sistemas de saúde do mundo inteiro não tiveram condições de responder adequadamente às primeiras vagas da pandemia.

O exemplo do Rio Grande do Sul é um deles, mas você tem aí uma série de outros exemplos ao redor do mundo mostrando que os sistemas de saúde não estão preparados para mudanças no padrão de adoecimento, especialmente mudanças drásticas.

Há toda uma discussão sobre investimentos, organização, coordenação, mas esse foi o primeiro nível que esteve fragilizado durante a pandemia, a capacidade de se organizar uma resposta àquele problema.

Em alguns sistemas de saúde predomina o atendimento de urgência e emergência, como é o caso do Brasil, voltado para um atendimento mais imediato. Apesar disso, o sistema não resiste um dia, uma semana à pandemia. Então, a resposta simples é não. Tem toda uma literatura hoje sobre a resiliência do sistema de saúde, sua capacidade de se adaptar e se recuperar diante de situações de crises e novos desafios.

 

? O Rio Grande do Sul, e principalmente Porto Alegre, foi muito atingido. Como é avaliado o sistema de saúde gaúcho?

Mario Dal Poz ? O Rio Grande do Sul, particularmente a região metropolitana, tem um bom sistema de saúde. Tem hospitais de referência, tem um sistema de atenção primária de saúde bastante bem distribuído, com infraestrutura hospitalar, clínicas de família, cobertura de vacinação, uma série de coisas. E uma população que tinha um histórico de conexão com instituições privadas filantrópicas. Então, tinha um sistema bastante bem-organizado e estabelecido.

O Rio Grande do Sul tem um sistema razoavelmente coberto. Até com o setor privado, de planos de saúde. É um sistema que era mais ou menos estável. Mas também lá não tinha ocorrido uma tragédia desta dimensão, em que a água invadiu hospitais. A infraestrutura foi fortemente afetada. Parece, é uma conclusão ainda preliminar, que ele conseguiu se recuperar muito rapidamente tão logo as águas baixaram. Se fosse aqui no Rio de Janeiro, talvez isso não tivesse ocorrido, pois tem uma estabilidade menor.

Essa é uma questão muito relevante, chama-se hoje resiliência. Uma definição que se cunhou exatamente em decorrência da capacidade de resposta à pandemia. Países que têm infraestrutura mais estabelecida e não têm crises ou, digamos, situações de crise e recuperação, têm mais capacidade de responder a uma situação de mudança climática ou a um desastre de qualquer natureza, natural ou provocado. É a capacidade de coordenação ou de governança que define isso. E, obviamente, financiamento e infraestrutura. Nos países de renda baixa ou muito baixa há pouca capacidade de execução.

A infraestrutura do Rio Grande do Sul é muito eficiente. A pandemia mostrou claramente a importância da capacidade de responder organizadamente, especialmente quanto à atenção. A resposta à atenção hospitalar, de emergência ou médica hospitalar [número de leitos disponíveis para internação], depende desses dois elementos.

Washington Junger ? O aumento da temperatura é gradual, não é abrupto, dá tempo para o sistema de saúde se organizar para atender as demandas que vão surgir. O problema maior são os efeitos de curto prazo, porque à medida que aumenta a temperatura aumentam a frequência e a intensidade dos eventos climáticos. Grandes desastres, como esse do Rio Grande do Sul, vão acontecer com mais frequência e talvez até de forma mais aguda, não tem como o sistema de saúde dar conta.

No Sul, a mobilização em torno do desastre de autoridades, das Forças Armadas, da sociedade civil como um todo, profissionais da Saúde, da Educação, foi muito importante. A recuperação foi mais rápida do que se esperava. Mas em cidades muito maiores talvez a gente não tenha o mesmo desfecho.

Em resumo, o efeito direto é lento, dá para se preparar para a contenção de óbitos por doenças cardiovasculares devido ao aumento de 8% da temperatura daqui a 70 anos. Agora, nos desastres é bem mais complicado.

 

Ação predatória do homem

 

? No caso da Covid, não se trata apenas da mudança climática provocada por efeito estufa, mas envolve a relação do homem com o meio ambiente. O homem chegou em algum lugar isolado da China, e dali veio um vírus que era uma novidade, não estava circulando em lugar nenhum. E, uma vez que aparece, o vírus vai se espalhando.

Mario Dal Poz ? Sim, nós temos o exemplo da febre amarela no Brasil. Ela veio do macaco para o meio urbano por conta desse mesmo mecanismo. Eu vi recentemente um mapa da Organização Mundial de Saúde de situações de emergência sanitária devidas a essa relação entre o homem e o meio ambiente, desorganizando uma situação de estabilidade.

Como enfatizou o Washington, o problema de organização não é tanto devido aos efeitos diretos, mas aos indiretos. Esse é um deles, em que você aumenta a possibilidade de que vetores se disseminem. Com certeza outras viroses ocorrerão, porque o homem continua interagindo com o meio ambiente de maneira predatória.

 

? Houve a gripe espanhola, que não foi ação humana. As aves transportaram o vírus e não há o menor controle sobre o que as aves vão fazer. A cidade se expande, vai penetrando lugares ainda não devastados.

Washington Junger ? À medida que a expansão urbana avança para as florestas mais pessoas ou animais portadores, por exemplo, os cães, vão tendo contato com os mosquitos e a doença tem mais capacidade de circulação e contágio.

Mario Dal Poz ? Há ainda a questão da globalização, gerando a necessidade de mecanismos de regulação internacionais. Os sistemas de saúde são basicamente nacionais, não existe um sistema internacional. Mas as doenças, os mosquitos, as aves, não querem saber disso, eles atravessam fronteiras. O aumento das viagens, da migração, da mobilidade do homem, cria novas situações, independentemente da crise climática e do aumento de temperatura.

Em tempos idos, alguém sugeriu colocar uma tela na fronteira dos EUA com o México para impedir a travessia dos mosquitos. Embora ridícula, essa proposta circulou objetivamente, fez parte de discussões técnicas e de financiamento. Começou-se a discutir como fazer, qual seria sua altura. Mas o mosquito desconhece fronteiras, isso é um problema nosso.

Até o começo do século XX havia o padrão de migração por procura de trabalho. Hoje, o padrão central ou majoritário são viagens curtas, não as migrações permanentes. Isso tem um impacto gigantesco na mobilidade. As pessoas se movem em escala muito maior e a maior velocidade.

 

Modelo questionado

 

? Quando problemas mais graves começarem a ocorrer, como uma desertificação mais acelerada, temperaturas extremas, enchentes, surgimento de novos vírus etc., seria sensato perguntar se as estruturas sanitárias conseguirão proteger as populações, ou seja, se vai haver dinheiro, atenção, energia, organização para tanto. Um mundo tão desigual está preparado para, nessa combinação de fenômenos, enfrentar a questão crucial, que é o óbito? Porque o resto você consegue dar um jeito, mas não na morte.

Mario Dal Poz ? Demora bastante tempo para se construir um hospital. Mesmo os hospitais de campanha têm uma equipe, precisam recrutar gente, treinar etc. O modelo atual não permite uma resposta adequada.

Hoje, com a crescente incorporação tecnológica há vários mecanismos que podem ser utilizados, como telessaúde, atendimento à distância, cirurgia à distância, inteligência artificial. Claro, tem o problema do financiamento, mas ele pode ser diferente do que é hoje. São necessários dois, quatro anos para construir um prédio de quatro, dez andares, mas não é claro que essa tecnologia será usada daqui a dez anos.

Aparentemente, a melhor resposta para lugares distantes, eventualmente isolados, não é a mesma que é a usada nos centros urbanos. A Austrália, onde as distâncias são muito grandes, tem experiências sensacionais, eventualmente surpreendentes para quem, como nós, responde às emergências construindo Unidade de Pronto Atendimento (UPA).

Em algum momento, frente a um problema específico no Rio de Janeiro (crise no sistema de emergência hospitalar), se adotou a política de construir UPAs e hoje, pelos levantamentos disponíveis, parece que haveria uns mil prédios não terminados ou sendo construídos ou desenhados, ou terrenos para fazer UPAs, nos quais você não tem equipe disponível nem a tecnologia necessária. Construiu-se uma resposta para um determinado momento e disseminou-se essa solução sem considerar as alterações climáticas, a mobilidade populacional, a evolução tecnológica.

 

? Você poderia se estender um pouco mais sobre essas alternativas?

Mario Dal Poz ? O mundo se organizou de maneira diferente, colocando salas de emergência ao lado de hospitais, ao lado de estruturas que já existem, e aquilo é a porta de entrada.

A UPA hoje é um lugar para onde as pessoas vão porque está aberta 24 horas, mas não necessariamente tem resolutividade adequada. Muitas vezes os pacientes saem de lá encaminhadas para outro lugar, ou sem ter seu problema resolvido. Ambulâncias levam os pacientes aos hospitais e ficam na porta esperando. Em um primeiro momento, parecia uma boa ideia, porque aqui no Rio de Janeiro você não tinha lugar para atendimento, as pessoas estavam na rua, os hospitais superlotados, emergências superlotadas.

Como muitos estudos mostram, não é assim que o resto do mundo trabalha. Na Rússia, por exemplo, são usadas estruturas com técnicos de enfermagem e outros profissionais. Nos Estados Unidos, na Inglaterra, em vários outros lugares, há estruturas ao lado ou associadas a hospitais. E se necessário, monta-se um sistema de atendimento de rua, de comunicação, não estruturas permanentes caríssimas.

Na Rocinha tem uma UPA ao lado de uma clínica de família, que custa quase 10 vezes menos que a UPA. Na UPA muitas vezes encontramos doentes sentados em maca ou em cadeiras. Na clínica de família as pessoas estão sendo atendidas com todos os cuidados éticos e num outro ambiente. Então, o problema é do modelo.

 

Participação da população

 

Mario Dal Poz ? Além disso, devemos construir alternativas não só tecnológicas, mas de participação da população. A resposta brasileira à epidemia da HIV e AIDS, com a mobilização da população, foi o que permitiu naquele momento uma resposta adequada. Salvou vidas. Não tínhamos remédios e uma série de coisas que temos hoje. Foi a participação da população afetada e não afetada que permitiu uma resposta positiva do poder público. Eu acho que é isso que pode fazer com que as estruturas sanitárias respondam melhor ao agravamento de certas condições.

 

? A ONU previu um aumento global médio de 3 graus centígrados, caso não se cumpram as metas de combate às mudanças climáticas. Quais seriam as consequências para a saúde humana de tal aumento de temperatura?

Washington Junger ? Parece pouco, mas estamos falando de aumento médio de temperatura do planeta. Isso significa que alguns lugares que não são quentes vão ficar mais quentes, mas lugares muito quentes, como a Austrália, talvez tenham uma capacidade maior de adaptação do que outros com temperaturas mais baixas. O Sul do Brasil, por exemplo, pode sofrer consequências maiores.

O relatório do IPCC tem um mapa global com as regiões do planeta onde são esperadas maiores variações. Os maiores aumentos de temperatura estão em torno do Equador, regiões com maior privação no planeta, o Nordeste brasileiro e uma boa parte da África. A expectativa é que o impacto seja maior nessas regiões já bastante quentes, onde você tem as piores condições socioeconômicas e, provavelmente, as piores ofertas de cobertura de serviços de saúde.

Os efeitos da mudança climática não são equânimes do ponto de vista da justiça ambiental. Como os efeitos da poluição, que estão relacionadas com a mudança climática. Nem todos sofrem os mesmos efeitos. Países do hemisfério norte, onde esses efeitos são menores, são aqueles que mais emitem gás carbônico. Isso está relacionado com o conceito de justiça ambiental, alguns agora estão falando em justiça climática. Outros falam de racismo ambiental. Esses conceitos estão imbricados e passam pela desigualdade.

 

? A percepção da presença de fatores genéticos numa série de doenças mudou. Incluem-se agora fatores ambientais. Não só do meio ambiente, mas também individuais, se a pessoa é fumante, alcoólatra etc. Mas há uma parte que é meio ambiente propriamente dito. Se aceleradas, essas causas poderiam influir na proliferação de doenças provocadas, no todo ou em parte, por tais fatores?

Washington Junger ? Já se verificou que certas doenças estão relacionadas com variações climáticas, sobretudo de temperatura. Embora seja um processo lento, a tendência é que a frequência dessas doenças aumente, porque a temperatura está aumentando.

Dois estudos frequentes na literatura envolvem as doenças respiratórias e as doenças cardiovasculares. Mais recentemente, pesquisadores estão estudando o efeito da variação de temperatura em aspectos da saúde mental, como a depressão.

Há estudos relacionados a doenças cardíacas. O mecanismo é mais óbvio, mais conhecido, passa pela desidratação, aumenta a viscosidade sanguínea e o coração acaba se esforçando mais, provocando algum tipo de lesão. Pessoas idosas estão mais suscetíveis. Estamos trabalhando num artigo sobre aspectos materno-infantis na gestação que seriam influenciados por mudanças climáticas, passando por mecanismo semelhante.

Mario Dal Poz ? Em 2008, na França, houve uma grande elevação de temperatura em julho, agosto, foi até setembro, teve um aumento gigantesco de óbitos, especialmente de uma população idosa que vivia dentro de apartamentos etc. E o sistema de saúde não tinha se organizado para isso.

Diferente do que ocorreu no Canadá, onde também houve um aumento importante de temperatura no mesmo período. Ali tinha um sistema de atendimento aos idosos que viviam isolados, com visitas diárias, alimentação etc. O impacto foi muito menor do que na França. Em Paris foi um impacto gigantesco.

Também na Europa, em 2003, a temperatura aumentou muito rapidamente e permaneceu alta durante um certo tempo, sem que se organizasse a necessária atenção domiciliar. Muitos idosos que viviam isolados, o que lá é comum, foram encontrados mortos. A desidratação é a causa mais óbvia. Mas tem várias doenças renais, doenças cardíacas de diferentes tipos, mesmo algumas doenças metabólicas. Então, os casos de desidratação foram acelerados pelo aumento repentino da temperatura.

 

Sistema brasileiro tende a excluir os mais vulneráveis

 

? É possível estimar o aumento do custo financeiro na área de saúde devido a essas mudanças climáticas?

Mario Dal Poz ? Existem algumas estimativas. Tem um documento da OMS que fala em alguns trilhões de dólares. É muito difícil ter uma projeção global concreta, mas o que é certo é que mais recursos serão necessários à medida que essas mudanças ocorram. O resto é um pouco de especulação. Há projeções, tem vários artigos sobre o assunto, mas as variações são muito grandes. Quanto maior o horizonte dessa projeção e maior a região envolvida, maior a incerteza.


? A concepção de serviços médicos de uma indústria farmacêutica essencialmente voltada ao lucro é compatível com a gravidade do que se verifica e do que se desenha?

Mario Dal Poz ? Globalmente, a indústria farmacêutica hoje é basicamente privada. Mesmo o medicamento genérico no Brasil é privado, funciona com incentivos. A indústria farmacêutica tem esta característica, ninguém pensa neste momento em estatizá-la. Mesmo em países que têm um investimento estatal muito grande, como na China, a tendência é o aumento do setor privado. No Brasil, mesmo quando o financiamento e a infraestrutura são públicos, a prestação é privada.

A maioria das prestações de serviços de atenção primária é feita por organizações sociais. O atendimento público operando em uma estrutura pública é minoritário no Brasil. Ligia Bahia (ver entrevista para Um Outro Brasil é Possível) fala na necessidade de um Observatório de Desprivatização.

As contradições desse modelo existem, os problemas daí decorrentes estão postos. Quando a pessoa compra um plano de saúde, ele compra uma promessa de ser atendido. Não é nem um seguro de saúde, o plano é uma promessa. Nosso modelo é muito particular, uma associação de serviços privados, de oferta de serviços e de medicamentos. Ou, eventualmente, de tecnologia. Não temos uma regulação pública, coordenação e financiamento organizado, e tendemos a deixar os mais vulneráveis de fora.

Os Estados Unidos investiram com o Obamacare em criar um mecanismo de seguro suplementar para aqueles que não tinham acesso ao seguro privado. Outros países fazem a expansão com financiamento direto, e o mecanismo de pagamento de pessoal pode variar.

Há muita divergência entre diferentes estudiosos sobre a organização do sistema, qual o papel do Estado, especialmente em situações de desigualdade como temos no Brasil. Cada país responde de uma maneira diferente, mas certamente não é possível deixar tudo à iniciativa privada lucrativa, porque isso tende a excluir os que mais precisam. Eu acho que essa é uma discussão que exige um pouco mais de reflexão.

Não há receita mágica. Hoje, cresce muito mais o serviço privado lucrativo. Isso diz muito da nossa desigualdade na distribuição de renda, apropriação da riqueza etc. Como você contrabalança isso? Certamente não é fazer com que todo mundo pague diretamente na farmácia ou pague diretamente do bolso o serviço de saúde. Isso deixaria muitas pessoas sem acesso, sem assistência e sem medicamento.

 

Sistemas que garantem acesso são os melhores

 

? Em que tipo de países ou regiões o serviço de saúde consegue responder razoavelmente às demandas de atendimento médico da população? O senador americano Bernie Sanders dá um quadro desolador da saúde nos Estados Unidos.

Mario Dal Poz ? Esse é um campo controverso, o da comparação de sistemas de saúde. Mas o sistema de saúde em que o acesso é garantido certamente funciona melhor. Os países nórdicos, até pelo tamanho, têm mais estabilidade. O sistema inglês, considerado por muitos como um modelo, enfrenta hoje uma grande crise, com um aumento do seguro privado, aumento de oferta privada e uma alta ineficiência.

Eu tenho dois filhos que moram em Londres. A demora para se marcar uma consulta é grande. O primeiro-ministro atual, Keir Starmer, colocou na sua lista de prioridades a redução da rotatividade dos médicos da atenção primária da saúde, que recebem baixos salários. Com o Brexit e com alguns mecanismos de restrição à imigração, há hoje menos médicos disponíveis, particularmente nas grandes cidades, mas não só. Londres é a que tem os melhores recursos, mas é a que tem mais problemas, desse ponto de vista.

Os Estados Unidos têm problemas de acesso, por conta do alto custo dos seguros, que se estabeleceram ao longo do tempo. O sistema de saúde francês está ligado a mecanismos de seguro social e tem características muito favoráveis. Mas como fazer a comparação? Depende de concepções. Compara-se expectativa de vida, taxa de mortalidade, a felicidade das pessoas? Tem gente que acha que se forem alocados médicos para lugares distantes o usuário vai ficar satisfeito. Mas não necessariamente ter uma saúde melhor. Esse é um campo onde há muitos estudos e diferentes conclusões. Mas há algum entendimento comum. Os sistemas sem acesso e com pagamento direto pelos pacientes, obviamente, são os piores.

A pandemia da Covid, por exemplo, não afetou os países igualmente, mesmo aqueles que não ofereciam bom acesso. Muitos países da África com baixo acesso tiveram mortalidade menor que outros com acesso. Características particulares precisam ser consideradas. Um sistema de saúde com infraestrutura organizada e mais estabilidade tende a responder melhor às demandas da população.

 

Elétricos: emissão zero só no cano de descarga

 

? Uma reportagem recente da Folha de S. Paulo (?'Síndrome da turbina' afeta saúde mental de vizinhos de parque eólico em PE?, 15/11/2024) mostra pessoas que moram perto de um sistema de geração eólica e estão enlouquecendo com o barulho. As autoridades sanitárias mundiais levam em conta toda a gama de problemas médicos que afligem corpo e mente de populações prejudicadas por medidas que visam combater o agravamento da mudança climática?

Washington Junger ? A minha impressão é que as decisões do que se implementa e como se implementa passam pelo domínio do político e do econômico, a saúde, na maioria dos casos, não sendo convidada a participar. Imagino que grandes empreendimentos têm algum tipo de avaliação de risco, mas não sei o quanto eles realmente entram na questão das consequências previsíveis.

São várias dimensões. Turbinas comandam o fluxo migratório de determinadas aves, devido ao ruído. Outro exemplo do passado é o do impacto ambiental das construções hidrelétricas. Não acredito que técnicos da saúde tenham sido convidados a discutir o problema. Ou foram derrotados na discussão.

Um exemplo presente e futuro é o dos veículos elétricos. Há uma pressão grande das montadoras e de governos, que passa muito pelos lobbies das montadoras. Estão vendendo o carro elétrico como uma solução limpa, de emissão zero. Mas a emissão zero é apenas no cano de descarga, porque você tem que carregar a bateria e a energia deve ser gerada com algum dispositivo.

No Brasil, estamos ultrapassando a nossa capacidade hidrelétrica. Bandeira laranja, amarela ou vermelha significa que estamos entrando na geração termoelétrica, com queima de combustível fóssil. Para dar conta do aumento da demanda, tanto pela necessidade econômica, pela nossa capacidade industrial, pelo aumento da população, do transporte etc. a gente precisa construir termoelétricas.

 

Gasolina polui menos que carvão

 

Minha mãe mora em Macaé (RJ). Fazendas estão sendo desativadas no entorno da cidade para abrigar termoelétricas. Todas as emissões que não são relacionadas com a queima de combustível fóssil para fazer o carro se mover continuam, para os pneus, a reciclagem do material do pneu, a química da pintura, está tudo presente, exceto no cano de descarga.

E aquelas relacionadas às emissões para a produção de eletricidade são deslocadas para regiões onde antes, possivelmente, não havia emissão alguma. As emissões são deslocadas do cano de descarga, próximo de quem emite nos centros urbanos, para outras populações; muitas vezes com menos acesso aos serviços de saúde e meios de transporte de qualidade.

Mas em compensação se colocou uma bateria. Havia emissão da poluição atmosférica, precursora do aquecimento, de CO2 principalmente, mas o problema se moveu para um lugar onde antes você não tinha emissão. Então é bom para a cidade e ruim para onde quer que eles tenham levado isso. Esse é um fator.

O Brasil tem uma das matrizes energéticas mais limpas do planeta, mas em alguns países ainda se queima carvão para gerar energia elétrica. Então, você está tirando a queima de um combustível talvez menos sujo do que a queima de carvão, ou óleo combustível, mais sujos.

Quando você começa a substituição pelos carros elétricos você aumenta ainda mais a pressão sobre a geração de energia. Esse é um aspecto. O outro é o que fazer com as baterias. Há notícias sobre baterias de sal e outras. As principais minas de lítio estão em lugares com instabilidade política muito grande.

Tem duas técnicas para a reciclagem das baterias. Uma envolve a queima do material das baterias. Para isso, você precisa de energia e emite poluição. A outra é um banho químico para separar da bateria o pouco que é aproveitável dela. Ou seja, eu queimo ou dou um banho químico, que deixa dejetos que podem eventualmente acabar contaminando rios e lagos.

Um fenômeno que está acontecendo nos Estados Unidos, porque eles já estão usando carros elétricos há mais tempo do que nós, é que a bateria tem vida útil em torno de 10 anos. As mais antigas nem isso. E o custo de sua reposição é maior do que o valor do veículo, que tem alta depreciação. Então, os veículos vão parar num grande depósito.

O carro elétrico está vindo com uma embalagem adequada ao conceito de ?verde? e com grande pressão econômica, que gera uma pressão política. Na verdade, as pessoas não estão discutindo isso em nenhum âmbito, nem mesmo na academia.

Mario Dal Poz ? Mesmo essas decisões que estão com o selo de combate à mudança climática vêm com um peso do campo político-econômico incomparavelmente maior. E os estudos de impacto dessas tecnologias, desses investimentos, são sempre muito relativos.

Por exemplo, veja a discussão sobre a exploração de petróleo no mar equatorial do Amazonas. A tendência é que as questões econômicas tenham mais peso na discussão do que a preservação do meio ambiente, das condições de vida e saúde das populações. Isso é uma falsa discussão, mas ela está posta. Há impactos que não são mensuráveis, ou que não estão sendo medidos.

A legislação proibiu que se estabeleçam moradias embaixo das linhas de transmissão elétricas, mas é onde a população de baixa renda se estabelece frequentemente. E não se consegue retirar, porque não tem onde realocar. Enfim, é um círculo vicioso.

Há ainda investimentos que vão para dentro de santuários ecológicos. Por exemplo, o novo autódromo no Rio de Janeiro está sendo projetado em um lugar que é hoje Mata Atlântica. Esses grandes investimentos carregam atrás de si uma carga de pressão de grupos de interesse políticos e econômicos. As populações locais estão longe de ser obstáculos.

Eu morei 15 anos em Genebra. Lá, um novo investimento tem que se submeter à aprovação dos moradores locais. Perto da minha casa, houve um projeto que ficou sete anos em discussão no Conselho Municipal. Ao final, houve um acordo, uma composição, o número de casas projetadas caiu sensivelmente. Aqui, nossa capacidade de resistência é muito reduzida.

(*) Mario Dal Poz é médico, doutor em saúde publica, professor titular do Instituto de Medicina Social Hesio Cordeiro da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e trabalhou ainda nas secretarias de Saúde de Niterói, do Rio de Janeiro, e na Organização Mundial de Saúde.

Washington Junger é graduado em estatística, doutor em epidemiologia, coordenador do Núcleo de Pesquisa em Epidemiologia Ambiental e professor do departamento de Epidemiologia do Instituto de Medicina Social Hesio Cordeiro da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.